Denúncia no CRM por Óbito em Atendimento de Emergência
- Ricardo Stival
- 17 de jun.
- 9 min de leitura
O ambiente da medicina de emergência é, por sua natureza, um palco de decisões rápidas, alta pressão e, por vezes, desfechos trágicos. Mesmo com a dedicação incansável e a aplicação de todo o conhecimento técnico-científico, o óbito de um paciente pode ocorrer. Quando isso acontece, além da dor da perda e do impacto emocional para o profissional, surge frequentemente a sombra de uma denúncia ao Conselho Regional de Medicina (CRM).

Para o médico que se vê nessa situação, a notícia de uma sindicância ou processo ético-profissional é um momento de profunda angústia e incerteza. É fundamental compreender que, nesses casos, a postura do CRM é de rigorosa apuração, dada a gravidade do desfecho. Diferentemente de outras situações, denúncias envolvendo óbito raramente são arquivadas sumariamente ou resultam em Termos de Ajustamento de Conduta (TAC). A tendência é que a investigação avance para um Processo Ético-Profissional (PEP), onde o médico responderá formalmente, com riscos significativos de condenação.
Este artigo visa oferecer um panorama detalhado sobre como o CRM aborda essas denúncias, os pontos de investigação e as implicações para o médico denunciado, servindo como um guia para a compreensão e a ação estratégica neste momento delicado.
Como o CRM Trata Denúncias por Óbito
Qualquer denúncia formal ou informal ao CRM, mesmo que anônima, desencadeia a abertura de uma sindicância. Esta é a fase investigativa inicial, prevista no Código de Processo Ético-Profissional (Resolução CFM nº 2.306/2022), cujo objetivo é verificar a existência de indícios mínimos de infração ética. É um procedimento preliminar, de caráter sigiloso, que busca reunir informações para decidir se há justa causa para a instauração de um Processo Ético-Profissional (PEP).
No entanto, a natureza da denúncia – o óbito de um paciente, especialmente em um contexto de emergência – altera significativamente a abordagem do Conselho. A gravidade do desfecho e o dever institucional do CRM de zelar pela saúde pública e pela boa prática médica levam a uma apuração muito mais rigorosa e aprofundada. Nesses casos, a probabilidade de arquivamento sumário da sindicância é mínima. Da mesma forma, a celebração de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), que permite ao médico corrigir a conduta sem a instauração de um processo formal, é extremamente rara em situações de óbito. A regra é que a sindicância evolua para um Processo Ético-Profissional, onde o médico passará a responder formalmente às acusações, com risco real de condenação e aplicação de penalidades.
O Que o CRM Investiga em Casos de Óbito
Quando há o falecimento de um paciente, o foco da investigação do CRM recai sobre a regularidade da conduta profissional do médico, buscando identificar se houve alguma falha ética ou técnica que possa ter contribuído para o desfecho. Os principais aspectos analisados incluem:
Aspecto Analisado | Questionamentos Comuns |
Prontuário Médico | Os registros estão completos, datados e coerentes com o quadro clínico? Há descrição detalhada das condutas adotadas, horários e evolução do paciente? As informações são legíveis e assinadas? |
Agilidade e Tomada de Decisão | Houve demora na triagem, atendimento inicial, diagnóstico ou na instituição de medidas terapêuticas? As decisões clínicas foram adequadas e compatíveis com a gravidade do quadro e os recursos disponíveis? |
Comunicação com a Família | O médico orientou os familiares de forma clara e empática sobre o estado de saúde do paciente, o prognóstico e os procedimentos a serem realizados? Foram dados esclarecimentos sobre o óbito e suas causas? |
Adesão a Protocolos e Boas Práticas | As medidas adotadas estão alinhadas aos protocolos institucionais e às boas práticas médicas reconhecidas para o atendimento de emergência? Houve desvio injustificado de conduta? |
Atuação em Equipe | O médico colaborou efetivamente com os demais profissionais da equipe (enfermeiros, técnicos, outros médicos)? Ocorreram falhas de comunicação ou omissões que impactaram o atendimento? |
Recursos Disponíveis | A conduta médica foi compatível com a estrutura física da unidade, os equipamentos e os meios disponíveis no momento do atendimento? Houve negligência na utilização ou solicitação de recursos? |
É crucial entender que o CRM não busca apenas a falha intencional, mas também a negligência, a imprudência ou a imperícia. A ausência de registros adequados, por exemplo, pode ser interpretada como negligência, mesmo que a conduta médica tenha sido correta. O prontuário é a principal ferramenta de defesa do médico, e sua completude e clareza são indispensáveis.
Riscos Aumentados Quando Há Mais Médicos Envolvidos
Em atendimentos de emergência, é comum que múltiplos profissionais de saúde estejam envolvidos, seja por plantões compartilhados, trocas de turno ou atuação em equipes multidisciplinares. Embora a colaboração seja essencial, a presença de vários médicos em um mesmo caso pode adicionar uma camada significativa de complexidade e risco em um processo ético no CRM.
Isso ocorre por diversas razões:
• Processos Paralelos ou Múltiplos Denunciados: O CRM pode optar por instaurar processos éticos individuais para cada médico envolvido, ou conduzir um único processo com múltiplos denunciados. Em ambos os cenários, a defesa se torna mais intrincada, pois as condutas de cada profissional serão avaliadas separadamente, mas também em conjunto.
• Divergência de Versões: Com vários profissionais atuando, é natural que existam diferentes percepções e registros sobre os eventos. Divergências nos prontuários, nas manifestações ou nos depoimentos podem gerar inconsistências que dificultam a construção de uma defesa coesa e podem ser interpretadas desfavoravelmente pelo Conselho.
• Responsabilização Solidária ou por Omissão: A ausência de clareza na divisão de responsabilidades ou a omissão de um profissional em determinada etapa do atendimento pode levar à responsabilização solidária. Ou seja, mesmo que um médico não tenha sido o principal responsável por uma suposta falha, ele pode ser responsabilizado se sua conduta (ou a falta dela) contribuiu para o desfecho desfavorável. O médico que “apenas acompanhou” ou “deixou com o colega” pode ser responsabilizado se houver omissão de registros, falha na supervisão ou descuido em seus deveres éticos.
• Complexidade na Delimitação de Responsabilidades: Determinar a responsabilidade individual em um cenário de atuação conjunta é um dos maiores desafios. O Conselho avaliará a conduta de cada profissional à luz de seus deveres éticos e técnicos, independentemente da atuação do grupo. Isso exige uma análise minuciosa de cada ação e omissão, tornando o processo mais demorado e exaustivo.
Quando há mais de um médico denunciado, a chance de responsabilização individual aumenta consideravelmente. O processo ético se torna ainda mais minucioso e perigoso, exigindo clareza sobre o papel de cada envolvido e firmeza na delimitação das responsabilidades para evitar que a culpa recaia sobre todos.
A Importância dos Registros
Em qualquer processo ético no CRM, o prontuário médico é, sem dúvida, a principal fonte de prova. Ele não é apenas um registro burocrático, mas um documento legal e ético que reflete a integralidade do atendimento prestado ao paciente. Em casos de óbito, sua importância é ainda mais acentuada, pois é através dele que o Conselho avaliará a conduta do médico e da equipe.
Um prontuário completo, claro e tempestivo deve refletir com exatidão:
• A situação clínica do paciente na admissão: Incluindo queixas, histórico, exames físicos e resultados de exames complementares.
• Os procedimentos realizados e as medicações administradas: Com horários, doses e vias de administração.
• As intercorrências: Qualquer evento adverso, complicação ou mudança no quadro clínico do paciente, com as respectivas condutas adotadas.
• As comunicações com familiares: Registros de conversas, orientações e obtenção de consentimentos.
• A decisão terapêutica e seus fundamentos: O raciocínio clínico que levou às escolhas de tratamento, demonstrando a adequação da conduta.
Prontuários lacônicos, incompletos, com termos vagos (“paciente estável”, “aguardando”) ou sem assinaturas e carimbos dificultam sobremaneira a defesa do médico. O CRM avalia com rigor se os registros são compatíveis com a gravidade do caso e se foram feitos de forma cronológica e fidedigna. A ausência de um registro pode ser interpretada como a não realização de uma conduta, e a falta de clareza pode gerar dúvidas e interpretações desfavoráveis. Em suma, o prontuário é a narrativa oficial do atendimento e, em um processo ético, ele falará pelo médico.
Etapas e Riscos do Processo Ético-Profissional
Quando a sindicância, fase investigativa inicial, encontra indícios suficientes de infração ética, ela evolui para a instauração de um Processo Ético-Profissional (PEP). Este é um rito processual formal, regido pelo Código de Processo Ético-Profissional, que confere ao médico a condição de denunciado e o direito ao contraditório e à ampla defesa. As etapas do PEP incluem:
Citação e Defesa Prévia: O médico é formalmente citado para apresentar sua defesa prévia, que é a primeira oportunidade de se manifestar sobre as acusações. É crucial que esta defesa seja elaborada com rigor técnico e jurídico, preferencialmente com o auxílio de um profissional especializado em direito médico.
Instrução Processual: Nesta fase, são produzidas as provas. Ocorrem as oitivas de testemunhas (denunciante, denunciado, testemunhas de defesa e acusação), análise de documentos, perícias e outras diligências que o relator ou as partes considerem necessárias para o esclarecimento dos fatos.
Alegações Finais: Após a fase de instrução, as partes apresentam suas alegações finais, resumindo os argumentos e as provas produzidas no processo.
Julgamento: O processo é então levado a julgamento perante o Conselho Regional de Medicina. O julgamento é realizado por conselheiros, que analisam as provas e os argumentos apresentados para proferir uma decisão.
Recursos: Em caso de condenação, o médico tem o direito de recorrer da decisão ao Conselho Federal de Medicina (CFM).
Em casos de óbito, especialmente em atendimentos de emergência, a chance de condenação ética é significativamente maior. As penalidades previstas no Código de Processo Ético-Profissional, e que podem ser aplicadas pelo CRM, variam em gravidade:
• Advertência confidencial: Anotação no prontuário do médico, sem publicidade.
• Censura confidencial em aviso reservado: Repreensão formal, também sem publicidade.
• Censura pública: Repreensão formal com publicação em diário oficial e veículos de comunicação do CRM.
• Suspensão do exercício profissional: O médico fica impedido de exercer a medicina por um período de 30 dias, com publicidade da penalidade.
• Cassação do exercício profissional: Perda definitiva do registro profissional, impedindo o médico de exercer a medicina em todo o território nacional. Esta é a penalidade mais grave e é aplicada em casos de infrações éticas gravíssimas.
As consequências de uma condenação ética vão muito além da esfera administrativa do CRM. Há um risco real de desdobramentos em outras esferas, como:
• Processos Cíveis: A condenação ética pode servir de base para ações de indenização por danos morais e materiais movidas pelos familiares do paciente.
• Processos Criminais: Dependendo da natureza da infração, o médico pode responder por crimes como homicídio culposo ou lesão corporal culposa.
• Danos Reputacionais e Profissionais: A publicidade de uma condenação (especialmente censura pública, suspensão ou cassação) pode destruir a imagem do médico, dificultar a obtenção de novos empregos, a manutenção de convênios e a obtenção ou renovação de Registros de Qualificação de Especialista (RQEs). A carreira construída ao longo de anos pode ser severamente comprometida.
É imperativo que o médico compreenda a seriedade de um Processo Ético-Profissional e os riscos inerentes, buscando a melhor estratégia de defesa desde o primeiro momento.
O Que o Médico Deve Fazer
Diante de uma denúncia no CRM, especialmente aquelas que envolvem o óbito de um paciente, a proatividade e a estratégia são cruciais. A postura reativa ou a tentativa de lidar com a situação sem o devido preparo podem agravar significativamente o cenário. Para o médico denunciado, as seguintes ações são indispensáveis:
• Busque Orientação Especializada Imediatamente: Desde a fase de sindicância, é fundamental contar com o apoio de um profissional especializado em direito médico. Este especialista possui o conhecimento técnico e a experiência necessária para analisar o caso, orientar sobre os procedimentos e construir uma defesa sólida, protegendo os interesses do médico em todas as etapas.
• Evite Comentários Informais: Qualquer comentário sobre o caso, seja com colegas, familiares, em redes sociais ou em grupos de mensagens, pode ser mal interpretado e utilizado contra o médico no processo. Mantenha o sigilo e restrinja as discussões ao seu defensor.
• Reúna Toda a Documentação Médica: Tenha em mãos cópias completas e legíveis de todo o prontuário do paciente, incluindo evoluções, prescrições, resultados de exames, laudos, escalas de plantão e quaisquer outros registros internos que se refiram ao atendimento. A organização e a completude desses documentos são vitais para a defesa.
• Compreenda o Papel de Cada Envolvido: Se houver outros profissionais de saúde envolvidos no atendimento, procure entender claramente o papel de cada um e a sequência dos eventos. Isso é fundamental para delimitar responsabilidades e evitar a responsabilização solidária indevida.
• Elabore uma Manifestação Técnica e Objetiva: A defesa deve ser baseada em fatos, evidências e na conformidade da conduta médica com os preceitos éticos e científicos. Argumentos emocionais, por mais compreensíveis que sejam, não são eficazes perante o Conselho. A manifestação deve ser técnica, focada nos aspectos objetivos do atendimento e na demonstração da diligência e prudência do médico.
A defesa em um processo ético no CRM não é apenas uma questão de inocência ou culpa, mas de demonstrar, por meio de provas e argumentos técnicos, que a atuação do médico foi compatível com os preceitos éticos, científicos e com os recursos disponíveis no momento do atendimento. É um momento de provar a correção da conduta e preservar a trajetória profissional.
O óbito de um paciente em atendimento de emergência é um dos momentos mais desafiadores na vida de um médico, tanto do ponto de vista humano quanto profissional. A denúncia ao CRM que se segue a um desfecho tão grave não é um mero formalismo; é uma investigação profunda que raramente resulta em arquivamento ou em um Termo de Ajustamento de Conduta. Pelo contrário, a tendência é a instauração de um Processo Ético-Profissional, com riscos concretos de condenação e penalidades severas.
A complexidade aumenta exponencialmente quando múltiplos profissionais estão envolvidos, tornando a delimitação de responsabilidades um desafio ainda maior. A ausência de registros claros e completos no prontuário médico, a principal ferramenta de defesa, pode ser um fator determinante para um desfecho desfavorável.
Nesse cenário de alta vulnerabilidade, o médico não está desamparado. No entanto, é imperativo que ele aja com consciência, estratégia e, acima de tudo, com a orientação adequada. Conhecer as etapas do processo, entender os riscos envolvidos e estruturar uma defesa técnica e sólida são medidas indispensáveis para atravessar esse período com a maior segurança possível e preservar a dignidade e a integridade de uma carreira dedicada à vida.































