DEFESA EM PROCESSO ADMINISTRATIVO NO CRM - DOENÇA INCAPACITANTE
O exercício da medicina é uma vocação que exige não apenas conhecimento técnico e dedicação, mas também plena capacidade física e mental. Em um cenário onde a saúde do profissional pode ser comprometida, surge a necessidade de um mecanismo que zele tanto pelo bem-estar do médico quanto pela segurança dos pacientes e da coletividade.
É nesse contexto que se insere o Processo Administrativo no Conselho Regional de Medicina (CRM) para apuração de doença incapacitante. Longe de ser um procedimento punitivo, ele representa um instrumento de proteção e apoio, visando garantir que o exercício da medicina ocorra sempre de forma digna, ética e segura. Este artigo se aprofundará nesse processo, fundamentado na RESOLUÇÃO CFM Nº 2.164/2017, oferecendo clareza e confiança aos profissionais que buscam compreender suas nuances.
A RESOLUÇÃO CFM Nº 2.164/2017
A Resolução CFM Nº 2.164/2017 é o principal diploma legal que regulamenta o procedimento administrativo para apuração de doença incapacitante, parcial ou total, para o exercício da medicina. Esta resolução revogou a Resolução CFM nº 1.990/2012, atualizando e aprimorando as diretrizes para esses casos. Seu objetivo primordial é assegurar que o médico que apresente indícios de doença incapacitante seja avaliado de forma justa e sigilosa, protegendo-o de uma má prática médica involuntária e, ao mesmo tempo, resguardando a saúde pública.
Princípios Fundamentais da Resolução
A resolução é pautada em princípios que visam a proteção do médico e da sociedade:
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Não Punitivo: O procedimento não tem caráter punitivo, mas sim protetivo e de averiguação da capacidade laboral do médico.
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Dignidade da Pessoa Humana: Reconhece a vulnerabilidade do médico em situação de doença, buscando protegê-lo e oferecer um caminho para a avaliação de sua condição.
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Contraditório e Ampla Defesa: Garante ao médico o direito de se manifestar, apresentar provas e ter sua defesa considerada em todas as etapas do processo.
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Sigilo Processual: Todo o procedimento tramita em sigilo, protegendo a privacidade e a imagem do médico envolvido.
O Início do Processo
O procedimento administrativo para apuração de doença incapacitante pode ser instaurado de duas formas, conforme o Art. 2º da RESOLUÇÃO CFM Nº 2.164/2017:
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De Ofício: Quando o próprio Conselho Regional de Medicina (CRM) toma conhecimento de indícios de doença incapacitante que possa afetar o exercício da medicina por um profissional.
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Mediante Representação: Por meio de uma denúncia formal que contenha a identificação do representante, a qualificação do médico representado, a descrição dos fatos e as provas que a instruem (Art. 3º).
Uma vez instaurado, o presidente ou corregedor do CRM designará um conselheiro instrutor, que será o responsável pela condução e relatoria do processo (Art. 2º).
As Fases do Procedimento Administrativo
O processo administrativo é meticulosamente estruturado para garantir a transparência e o direito à defesa do médico. As principais fases são:
Citação e Manifestação do Médico Periciando
Após a instauração, o médico periciando será citado e intimado a se manifestar sobre o mérito da apuração no prazo de 10 (dez) dias. Neste momento, é crucial que o médico junte aos autos toda a documentação pertinente à sua manifestação (Art. 2º, § 1º). Caso o médico não seja localizado em seu endereço de registro, a citação será feita por edital público, sem qualquer referência aos motivos da publicação, preservando o sigilo (Art. 2º, § 2º). Se o médico não se manifestar, será declarada sua revelia, e um defensor dativo será nomeado para representá-lo (Art. 2º, § 3º).
Designação de Curador (em casos de doença mental)
Quando houver suspeita de que a doença incapacitante seja de natureza mental, o representante legal do médico deverá ser intimado para exercer a função de curador no procedimento. Essa medida visa assegurar que os interesses do médico sejam devidamente representados (Art. 2º, § 4º).
Perícia Médica
Após a manifestação do médico, ou a nomeação de defensor dativo, será designada uma perícia médica para avaliar a eventual doença incapacitante. O presidente do CRM designará uma junta médico-pericial para realizar essa avaliação (Art. 2º, § 5º e § 6º). O médico periciando terá o prazo de 10 (dez) dias para indicar um assistente técnico e formular quesitos, caso seja de seu interesse (Art. 2º, § 7º).
É importante notar que, se o médico não comparecer ao ato pericial, o conselheiro instrutor poderá designar a realização de uma perícia indireta (Art. 2º, § 8º). A perícia médica deve seguir um roteiro básico previsto no Anexo I da Resolução, garantindo a padronização e a qualidade da avaliação.
Avaliação das Provas e Diligências Complementares
Após a realização da perícia médica, o conselheiro instrutor avaliará todas as provas constantes dos autos. Ele poderá determinar outras diligências que julgar necessárias para a completa averiguação da possível doença incapacitante (Art. 3º). Além disso, o conselheiro instrutor designará uma audiência de instrução para o depoimento pessoal do médico periciando, salvo em casos de inviabilidade motivada (Art. 3º, Parágrafo único).
Alegações Finais e Relatório Conclusivo
Encerrada a fase instrutória, o médico periciando terá um prazo de 30 (trinta) dias corridos para apresentar suas alegações finais (Art. 4º). Expirado esse prazo, o conselheiro instrutor elaborará um relatório conclusivo, fundamentado nos elementos colhidos durante a instrução e, principalmente, no laudo pericial. Este relatório será então encaminhado à sessão plenária do CRM para deliberação (Art. 4º, Parágrafo único).
Deliberação Plenária e Possíveis Desfechos
O plenário do Conselho Regional de Medicina, em sessão sigilosa, apreciará o relatório conclusivo. A decisão pode resultar em diferentes desfechos, conforme o Art. 5º da RESOLUÇÃO CFM Nº 2.164/2017:
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I – Suspensão do procedimento administrativo: O procedimento é suspenso, podendo ser precedido de parecer da assessoria jurídica sobre os efeitos em relação a eventual sindicância ou Processo Ético-Profissional (PEP) já instaurado. A plenária pode, ainda, decidir pela realização de exames periódicos no médico por até 2 (dois) anos ininterruptos. Após esse período, o procedimento será submetido a nova apreciação, mas não poderá mais ser suspenso (Art. 5º, § 1º e § 2º).
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II – Arquivamento: O procedimento é arquivado. No entanto, pode ser reaberto a qualquer momento caso surjam novos elementos referentes à possível doença incapacitante anteriormente averiguada (Art. 5º, § 3º).
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III – Suspensão parcial temporária do exercício da medicina: A decisão deve prever, de maneira fundamentada, os limites de sua extensão e prática, as áreas da medicina autorizadas ou restritas, e os métodos de avaliação periódica do médico suspenso (Art. 5º, § 4º).
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IV – Suspensão parcial permanente do exercício da medicina: Semelhante à suspensão parcial temporária, mas com caráter permanente (Art. 5º, § 4º).
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V – Suspensão total temporária do exercício da medicina: A decisão deve fixar os limites de sua extensão e eventuais métodos de controle e acompanhamento da evolução da doença (Art. 5º, § 5º).
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VI – Suspensão total permanente do exercício da medicina: A decisão mais grave, que impede definitivamente o exercício da medicina (Art. 5º, § 5º).
Recursos
Das decisões do Conselho Regional de Medicina, cabe recurso para o Conselho Federal de Medicina (CFM) no prazo de 15 (quinze) dias, sem efeito suspensivo, a contar da data da intimação da decisão (Art. 6º). A exceção é a suspensão total permanente do exercício da medicina (inciso VI), cuja competência para julgamento do recurso é do Pleno do CFM.
Ao receber o recurso, o corregedor do CFM o remeterá à Coordenação Jurídica (Cojur) para exame de admissibilidade e emissão de Nota Técnica, se houver preliminar processual. Em seguida, o recurso é distribuído a um conselheiro-relator, que terá 30 (trinta) dias para elaborar seu relatório e voto, sendo pautado para julgamento na sessão plenária subsequente (Art. 7º). A sessão de julgamento no CFM segue o rito previsto no Código de Processo Ético-Profissional (CPEP).
Diante da complexidade e das implicações de um processo administrativo por doença incapacitante, a presença de uma defesa técnica especializada é de suma importância. Um profissional do direito com expertise em direito médico pode:
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Orientar o Médico: Esclarecer todas as etapas do processo, os direitos e deveres do médico periciando.
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Auxiliar na Coleta de Provas: Ajudar na reunião de documentos médicos, laudos, exames e outros elementos que comprovem a condição de saúde do médico.
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Elaborar a Defesa: Redigir manifestações, alegações finais e recursos com argumentação jurídica sólida e fundamentada na legislação e na jurisprudência.
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Acompanhar o Processo: Garantir o cumprimento de prazos, a correta intimação e a representação do médico em todas as fases, incluindo audiências e julgamentos.
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Assegurar o Contraditório e a Ampla Defesa: Zelar para que todos os direitos do médico sejam respeitados, buscando o melhor desfecho possível para o caso.
Ter um suporte jurídico qualificado não apenas aumenta as chances de um resultado favorável, mas também proporciona ao médico a tranquilidade necessária para lidar com um momento delicado de sua vida profissional e pessoal.
Prevenção e Cuidado
Embora o processo administrativo por doença incapacitante seja um mecanismo de proteção, a melhor abordagem é sempre a prevenção e o autocuidado. Médicos, como quaisquer outros profissionais, estão sujeitos a enfermidades que podem afetar sua capacidade laboral. Reconhecer os sinais, buscar ajuda profissional e, se necessário, afastar-se temporariamente da atividade são atitudes de responsabilidade consigo mesmo, com a profissão e com os pacientes.
Manter um acompanhamento médico regular, cuidar da saúde mental e física, e estar atento aos próprios limites são práticas essenciais para um exercício da medicina longe de intercorrências. A ética médica também se manifesta no reconhecimento da própria vulnerabilidade e na busca por soluções que garantam a segurança de todos os envolvidos.
O Processo Administrativo no CRM para apuração de doença incapacitante é um tema que, embora delicado, deve ser compreendido por todos os médicos. Ele reflete o compromisso do Conselho Federal e dos Conselhos Regionais de Medicina em proteger tanto o profissional quanto a sociedade, assegurando que a prática médica seja exercida com a máxima capacidade e responsabilidade.
Ao entender as fases, os direitos e as garantias desse procedimento, e ao buscar o apoio de uma defesa técnica especializada quando necessário, o médico pode enfrentar essa situação com maior confiança e serenidade. A medicina é uma profissão de cuidado, e esse cuidado se estende também ao próprio médico, garantindo que sua jornada profissional seja pautada pela segurança, ética e dignidade.
Ricardo Stival é Advogado, Professor de Pós-Graduação de Direito Médico, Especialista em Ações Judiciais de Erro Médico, Sindicâncias e Processos Éticos no CRM e CRO, com atuação em todo o Brasil





