Defesa contra Denúncia por Omissão de Socorro — Incluindo Exposição em Redes Sociais
- Ricardo Stival
- há 19 horas
- 6 min de leitura
Atualizado: há 9 horas
Entre as acusações que mais causam temor entre os médicos está a de omissão de socorro. Este tipo de imputação carrega um estigma particularmente forte, pois toca na essência da missão médica: proteger vidas. Ser acusado de ter se omitido perante um paciente em perigo é, para muitos profissionais, um golpe emocional profundo.

Contudo, a realidade é que essa acusação, muitas vezes, nasce de um desconhecimento por parte da sociedade sobre os limites éticos, técnicos e jurídicos do dever de agir do médico. Nem toda recusa de atendimento configura omissão de socorro. Nem toda ausência de intervenção, em um determinado contexto, é juridicamente punível.
Neste cenário, um agravante dos tempos atuais é a exposição precoce e irresponsável desses casos em redes sociais. O médico pode ser julgado e condenado moralmente no tribunal da internet antes mesmo que qualquer apuração formal tenha sido concluída.
Este artigo tem como objetivo orientar, de forma didática e aprofundada, como o médico deve se posicionar e se defender em situações como essa — tanto no plano técnico-jurídico quanto na gestão de sua imagem pública. Um conteúdo que você poderá consultar e compartilhar com confiança, para proteger não apenas a sua atuação profissional, mas também a sua reputação.
Omissão de Socorro: Definição e Aplicação na Prática Médica
O crime de omissão de socorro está previsto no artigo 135 do Código Penal Brasileiro:
"Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à pessoa em situação de perigo iminente."
Aparentemente, trata-se de um conceito simples. No entanto, a sua aplicação prática no contexto médico exige um entendimento mais sofisticado.
Primeiramente, deve-se lembrar que o médico, como todo cidadão, não possui um dever jurídico ilimitado de agir em qualquer situação. A lei exige que a conduta omissiva só será punível se:
O médico tiver conhecimento claro e inequívoco da situação de perigo iminente;
O médico possuir condições técnicas e materiais adequadas para prestar o socorro no momento;
O médico puder atuar sem risco relevante para si próprio ou para terceiros sob sua responsabilidade.
Essa avaliação não é meramente subjetiva. É uma análise de contexto, que deve considerar as particularidades de cada caso concreto.
Por exemplo: um médico que está de férias em um local remoto, sem acesso a equipamentos mínimos, e se depara com uma situação de emergência, não terá a mesma obrigação jurídica de agir que um médico de plantão em um pronto-socorro.
A seguir, apresento uma síntese das situações mais comuns em que essa análise se torna relevante:
Situação | Potencial de Risco de Denúncia | Comentário |
Médico de plantão recusa atendimento emergencial | Muito alto | Pode configurar omissão de socorro clara |
Médico em local público chamado a atender emergência | Moderado a alto | Avaliar se há risco pessoal e se há meios técnicos |
Médico fora de serviço, sem meios técnicos e sob risco | Baixo a moderado | Defesa sólida se documentar corretamente |
Pedido informal de atendimento via WhatsApp ou redes | Muito baixo | Não configura omissão, mas requer atenção documental |
É crucial que o médico conheça seus direitos e deveres em cada uma dessas situações. O que gera a maior insegurança não é a legislação em si, mas a desinformação sobre os limites da atuação médica. Médicos bem preparados juridicamente têm condições muito melhores de evitar imputações injustas.
O Novo Elemento: Redes Sociais como Ambiente de Linchamento
Em tempos recentes, assistimos a uma transformação na forma como acusações contra médicos são veiculadas. O tribunal da internet tornou-se, para muitos, a primeira instância de julgamento — e, em muitos casos, a mais implacável.
Não são poucos os episódios em que familiares de pacientes, insatisfeitos com desfechos clínicos, optam por publicar relatos nas redes sociais antes mesmo de formalizar qualquer denúncia oficial. Tais postagens costumam viralizar rapidamente, criando uma onda de indignação coletiva.
O ciclo típico desse linchamento moral segue o seguinte padrão:
Ocorre um episódio clínico com desfecho que gera insatisfação;
Familiares ou terceiros publicam relatos emocionais nas redes, marcando o nome do médico e da instituição;
A publicação viraliza, sendo compartilhada de forma acrítica por centenas ou milhares de pessoas;
O médico passa a sofrer ataques pessoais, ameaças e constrangimento público;
Pressionadas, as autoridades instauram apurações — muitas vezes de forma precipitada.
O problema dessa dinâmica é que ela inverte o devido processo legal. A presunção de inocência desaparece. A versão da acusação passa a prevalecer na opinião pública, colocando o médico em uma posição extremamente vulnerável.
Por isso, é fundamental adotar estratégias de contenção desde o início — como abordaremos mais adiante.
Erros Mais Comuns dos Médicos Nessas Situações
Ao serem surpreendidos por uma acusação de omissão de socorro — ainda mais quando amplificada nas redes sociais — muitos médicos, compreensivelmente, agem movidos pela emoção. Isso é natural. No entanto, algumas reações instintivas acabam agravando o problema.
A seguir, elenco os erros mais frequentes, acompanhados de explicações detalhadas:
Responder publicamente nas redes sociais
Este é um dos erros mais comuns. O impulso de "dar sua versão" e "defender sua honra" é forte. Mas ao fazer isso, o médico corre dois riscos graves:
Violação do sigilo profissional — ao comentar publicamente sobre fatos relacionados ao atendimento de um paciente, mesmo que para se defender, o médico pode infringir o dever ético de confidencialidade;
Alimentar a polêmica — quanto mais o tema é debatido publicamente, mais difícil se torna conter os danos reputacionais.
Ignorar o problema e não documentar os fatos
Outro erro frequente é a inércia. Alguns médicos, por medo ou esperança de que a situação "se resolva sozinha", deixam de tomar providências imediatas.
O problema é que o tempo é inimigo da defesa. Cada dia que passa sem documentação adequada é uma oportunidade perdida de consolidar uma versão robusta e defensável dos fatos.
Não adotar medidas de proteção
Diante de ataques públicos, é essencial registrar boletins de ocorrência e buscar proteção jurídica. O silêncio absoluto permite que a narrativa da acusação se fortaleça sem contestação formal.
Não preservar provas
Prints de postagens, comentários e mensagens privadas são fundamentais para demonstrar o contexto e a cronologia dos acontecimentos. Muitos médicos negligenciam essa etapa — e depois se arrependem.
Erro cometido | Efeito imediato | Efeito na defesa |
Responder publicamente | Viola sigilo; agrava crise | Prejudica postura ética |
Ignorar o problema | Perde controle da narrativa | Fragiliza defesa formal |
Não acionar proteção jurídica | Exposição sem reação | Prejudica proteção pessoal |
Não preservar provas | Fatos distorcidos ganham força | Dificulta contraprova documental |
A melhor postura inicial é combinar prudência, documentação rigorosa e resposta formal nos canais apropriados. A pressa em responder nas redes ou a paralisia por medo são igualmente prejudiciais.
Conduta Imediata Recomendada
Diante de uma acusação de omissão de socorro, formal ou informal, o médico deve adotar uma estratégia organizada e meticulosa. Recomendo o seguinte roteiro:
Preservação da prova
Imediatamente:
Capturar prints de todas as postagens relacionadas, incluindo comentários e stories;
Armazenar mensagens privadas recebidas (inclusive com ameaças ou ofensas);
Identificar testemunhas presenciais ou indiretas que possam corroborar a versão do médico.
Comunicação formal
De forma orientada:
Enviar notificação extrajudicial aos autores das postagens ofensivas, requerendo a retirada do conteúdo;
Registrar boletim de ocorrência sempre que houver ameaça, injúria ou difamação.
Documentação técnica
Este é um ponto crucial:
Elaborar um relatório técnico detalhado e cronológico, descrevendo:
As circunstâncias da ocorrência;
As condições materiais e técnicas do momento;
As razões que justificaram a atuação ou não atuação do médico;
As providências efetivamente adotadas.
Este documento será peça central na defesa futura — tanto perante o CRM quanto perante eventuais processos judiciais.
Esfera Ética: Análise dos Conselhos Regionais de Medicina
Os Conselhos de Medicina tratam a omissão de socorro como infração grave. O artigo 57 do Código de Ética Médica é claro: o médico não deve deixar de prestar socorro em situações de urgência ou emergência quando esteja ao seu alcance fazê-lo.
Porém, na prática, a análise ética é sofisticada. O que os Conselhos procuram verificar é:
Existiam condições reais de atendimento?
Havia risco pessoal relevante?
O médico tinha ciência inequívoca da situação?
A conduta foi motivada por omissão deliberada ou por impossibilidade material?
Nos casos em que o médico documenta corretamente os fatos e demonstra que agiu nos limites do possível, a tendência é de arquivamento da denúncia.
Esfera Criminal: Quando o Médico Pode Ser Responsabilizado?
A responsabilização criminal por omissão de socorro exige que a acusação comprove três elementos cumulativos:
O médico sabia da situação de perigo iminente;
O médico tinha capacidade e condições de intervir com segurança;
O médico optou conscientemente por não agir.
Na ausência de qualquer desses elementos, a defesa pode obter o arquivamento da investigação ou a absolvição.
Aqui, novamente, a documentação bem elaborada pelo médico desempenha um papel determinante.
O Médico Está Obrigado a Agir em Todas as Situações?
Não. A obrigação de agir depende do contexto:
Situação | Obrigação jurídica | Comentário |
Plantão em unidade de emergência | Obrigação plena | Dever legal e ético claro |
Presença em local público | Condicionada | Avaliar risco pessoal e meios disponíveis |
Fora de serviço, local sem condições | Não obrigatória | Defesa baseada em impossibilidade objetiva |
Pedido informal via mensagem | Não obrigatória | Não gera dever jurídico de agir |
Cada situação deve ser analisada caso a caso, com rigor técnico e jurídico.
Ser acusado de omissão de socorro, sobretudo quando injustamente, é uma das experiências mais difíceis que um médico pode enfrentar. O impacto emocional e reputacional é enorme.
Contudo, com uma postura estratégica — preservação de provas, documentação detalhada e resposta ética e formal — é plenamente possível construir uma defesa sólida e proteger a carreira e a honra profissional.
O mais importante é agir de forma racional, com método e prudência. A serenidade, aliada à técnica jurídica e ética, é a melhor aliada do médico em momentos assim.