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Médico que atua para o SUS realmente não pode ser processado?

  • Foto do escritor: Ricardo Stival
    Ricardo Stival
  • há 8 horas
  • 4 min de leitura

Muitos médicos têm dúvidas se um atendimento prestado via Sistema Único de Saúde - SUS pode ou não sofrer um processo indenizatório proposto por um paciente.



O Supremo Tribunal Federal fixou importante tese sobre a responsabilização do Estado por danos decorrentes de atos de seus agentes públicos (Tema 940 da repercussão geral).


Em linhas gerais, de acordo com a decisão para o SUS, é incabível a propositura de ação judicial de pacientes diretamente contra o médico.


Entretanto, essa diretriz não se aplica indistintamente a todos os profissionais que atuam em serviços públicos ou que, de alguma forma, mantêm relação com o Estado.


No contexto da saúde pública, muitos profissionais médicos atuam em estabelecimentos privados que mantêm convênios com o SUS, especialmente por meio de contratos de prestação de serviços com clínicas, laboratórios ou hospitais particulares.


Esses profissionais não são servidores públicos, nem ocupam cargos ou funções públicas, e tampouco se submetem ao regime jurídico-administrativo próprio dos agentes estatais.


A Constituição Federal estabelece que os agentes públicos compreendem os servidores estatutários, os empregados públicos e os ocupantes de cargos em comissão, todos sob algum regime jurídico de direito público.


Já os profissionais contratados por clínicas privadas conveniadas ao SUS estão vinculados a relações de natureza privada, regidas predominantemente pelas normas trabalhistas e civis, sem qualquer investidura pública direta. Ainda que suas atividades, em última análise, beneficiem o sistema público de saúde, isso não os transforma automaticamente em agentes públicos ou equiparados.


A decisão proferida pelo STF no Tema 940 limita-se aos agentes públicos propriamente ditos, isto é, àqueles que detêm vínculo jurídico com o Estado. A jurisprudência não permite que a proteção da tese se estenda a particulares que atuem por meio de pessoas jurídicas privadas. A tentativa de aplicar o entendimento do Tema 940 para blindar médicos contratados por instituições de saúde privadas em ações de indenização, regressivas ou de responsabilização pessoal, configura uma distorção indevida da decisão do STF, que deve ser interpretada restritivamente.


Importa destacar que o próprio STF reconhece que o vínculo jurídico do agente é elemento essencial para atrair a aplicação da tese fixada. Em outras palavras, é necessário que o profissional tenha sido investido diretamente em função pública para que a responsabilidade por eventuais danos recaia inicialmente sobre o Estado, e só posteriormente - após condenação com trânsito em julgado se o Estado buscar a responsabilidade do médico - sobre o agente. No caso de médicos contratados por clínicas privadas, inexiste qualquer relação funcional com o poder público, o que afasta completamente a aplicação do Tema 940.


Mesmo nos casos em que o atendimento médico foi prestado por meio do SUS, a origem pública do recurso ou a destinação coletiva do serviço não altera a natureza jurídica do vínculo entre o profissional e a instituição de saúde contratante.


Ou seja, a eventual delegação da atividade estatal à iniciativa privada, por meio de convênio ou contrato, não converte os profissionais terceirizados em agentes públicos. A responsabilidade por atos culposos ou dolosos, nesses casos, segue a lógica da relação privada, podendo ser diretamente imputada ao profissional, sem a necessidade de ação prévia contra o ente público.


Portanto, em demandas judiciais que envolvem a responsabilização de médicos atuantes em clínicas particulares conveniadas ao SUS, não cabe a invocação do Tema 940 como fundamento para suspender ou impedir ações diretas contra esses profissionais.


A tese fixada pelo STF não se aplica a eles, pois sua atuação, embora integrada ao sistema público de saúde, se dá por meio de contratos privados, sem investidura pública, sem prerrogativas funcionais e sem as garantias próprias do regime jurídico-administrativo. É imprescindível que operadores do direito estejam atentos a essa distinção para evitar interpretações equivocadas e decisões que comprometam a efetividade da tutela jurisdicional.


Inclusive, é importante frisar que o Tema 940 do STF trata exclusivamente da responsabilidade civil regressiva do Estado em face de seus agentes públicos, não tendo qualquer efeito sobre a responsabilidade criminal ou ética-profissional do agente envolvido. Mesmo quando se está diante de um verdadeiro agente público, o entendimento do STF não confere imunidade penal nem afasta a apuração de condutas no âmbito administrativo-disciplinar, como aquelas conduzidas pelos Conselhos Regionais de Medicina (CRM).


Portanto, a tese firmada no Tema 940 não se aplica - nem direta nem indiretamente a procedimentos ético-profissionais perante o CRM, tampouco a investigações ou ações penais que tenham por objeto condutas dolosas ou culposas do profissional de saúde. A lógica de proteção da responsabilização civil regressiva não impede a responsabilização em outras esferas, sobretudo quando a conduta imputada ao médico extrapola os limites da atuação técnica, configurando infração ética ou crime.


Ainda que o médico estivesse formalmente investido em função pública - o que não ocorre quando atua por meio de vínculo com clínicas privadas conveniadas ao SUS, a eventual proteção contra ação civil regressiva prevista no Tema 940 não se estenderia à responsabilização nas esferas penal e administrativa. A atuação do CRM, por exemplo, é autônoma e não depende de prévia condenação judicial ou responsabilização do ente público.


No caso dos médicos contratados por estabelecimentos privados que prestam serviços ao SUS, a situação é ainda mais clara. Tais profissionais não detêm qualquer natureza jurídica de agente público, o que já basta para afastar a aplicação da tese do STF no plano civil. No entanto, mesmo que essa fosse uma discussão relevante, em nada influenciaria na possibilidade de sua responsabilização penal ou ético-disciplinar, pois essas instâncias não guardam relação de dependência com a tese fixada pelo Supremo.


Assim, é incorreta qualquer tentativa de utilizar o Tema 940 para requerer a suspensão de sindicâncias ou processos éticos nos Conselhos Regionais de Medicina ou mesmo para alegar ausência de justa causa em investigações criminais, quando há indícios de negligência, imprudência, imperícia ou outro ilícito. O direito à ampla defesa e ao contraditório será assegurado nesses âmbitos, mas o obstáculo processual criado pelo STF diz respeito unicamente à via civil indenizatória regressiva — e com escopo limitado à relação entre Estado e agente público.


Essa distinção é fundamental para evitar distorções jurídicas e indevidas blindagens a profissionais que, embora atuem em benefício do sistema público de saúde, não gozam de prerrogativas funcionais típicas do serviço público, tampouco podem se eximir de responder por seus atos perante a esfera penal ou administrativa competente.

Ricardo Stival é Advogado, Professor de Pós-Graduação de Direito Médico,  Especialista em Ações Judiciais de Erro Médico, Sindicâncias e Processos Éticos no CRM e CRO, com atuação em todo o Brasil
Ricardo Stival - Advogado de Direito Médico

Ricardo Stival - Advogado e Professor de Direito Médico

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