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Denúncia de Violência Obstétrica: Orientações para Médicos

  • Foto do escritor: Ricardo Stival
    Ricardo Stival
  • 13 de jun.
  • 27 min de leitura

Atualizado: 15 de jun.

Poucas especialidades na medicina lidam com momentos tão intensos da vida humana — física e emocionalmente — quanto a obstetrícia. É um campo onde a ciência e a arte se encontram para testemunhar e facilitar um dos milagres mais profundos da existência: o nascimento. Contudo, essa mesma proximidade com o sagrado e o vulnerável, com as expectativas mais íntimas e os desfechos mais imprevisíveis, tem, nos últimos anos, lançado uma sombra de apreensão sobre a prática de muitos profissionais dedicados. O que antes era um terreno de celebração e cuidado, tornou-se, para alguns, um cenário de acusações e mal-entendidos: as denúncias por suposta violência obstétrica.



Este fenômeno, que se manifesta com uma frequência alarmante e um impacto jurídico e reputacional devastador, transcende a mera discussão técnica. Ele mergulha nas profundezas das transformações sociais, nas redefinições de direitos e na complexidade das relações humanas em momentos de extrema vulnerabilidade. Médicos com trajetórias impecáveis, com décadas de dedicação à vida e à saúde, veem-se subitamente confrontados com narrativas que questionam não apenas sua conduta profissional, mas sua própria ética e humanidade. O que era um ato médico pautado pela ciência e pela boa-fé, pode ser reinterpretado, à luz de novas percepções e sensibilidades, como um gesto de desrespeito ou abuso.


Não se trata de um debate simples, onde a verdade reside em um único ponto. A suposta violência obstétrica, um conceito que sequer possui uma tipificação jurídica clara e unívoca em nosso ordenamento, é, em sua essência, uma construção multifacetada. Ela emerge de discursos sociais, de movimentos por direitos humanos e de uma legítima e crescente reivindicação por uma experiência de parto mais humanizada e respeitosa. No entanto, essa mesma construção, ao ganhar força e ressonância na mídia e nas redes sociais, criou um ambiente onde a percepção subjetiva e a narrativa emocional muitas vezes se sobrepõem à análise técnica e contextualizada dos fatos.


Diante desse cenário de complexidade crescente, é imperativo que o médico, especialmente o obstetra, não apenas domine a arte e a ciência de sua especialidade, mas também compreenda as nuances desse novo panorama jurídico-social. Este artigo nasce com o propósito de ser mais do que um texto informativo; ele se propõe a ser um guia, um manual discreto, um farol de conhecimento e estratégia para navegar por essas águas desafiadoras. Ele busca oferecer uma visão profunda e prática sobre:


• A gênese e a evolução do conceito de violência obstétrica, desmistificando suas bases jurídicas e sociais.


• Os fatores que impulsionam o crescimento exponencial dessas denúncias, revelando as forças sociais e culturais em jogo.


• As múltiplas e interligadas esferas de risco que o médico pode enfrentar, desde processos éticos e administrativos até ações cíveis com impactos financeiros devastadores e o temido linchamento midiático.


• A importância inegociável de uma postura estratégica, ética e de uma condução jurídica especializada, capaz de proteger não apenas a carreira, mas a reputação e a paz de espírito do profissional.


Ao mergulhar nestas páginas, o leitor encontrará uma análise densa, pautada pela experiência e pelo domínio técnico, que busca acolher a ansiedade do profissional e, ao mesmo tempo, municiá-lo com o conhecimento necessário para enfrentar esses desafios com serenidade e inteligência. Não se trata de ensinar a montar uma defesa, mas de reforçar a complexidade do tema e a imperatividade de uma condução cuidadosa, especializada e estratégica. É um convite à reflexão e ao preparo, para que a nobre missão de trazer vidas ao mundo continue sendo exercida com a dignidade e a segurança que merece.


A Construção Social e Jurídica do Conceito de Violência Obstétrica: Desvendando um Paradigma em Evolução


Para compreender a magnitude e a complexidade das denúncias por suposta violência obstétrica, é fundamental, antes de tudo, desvendar a própria natureza desse conceito. Diferentemente de figuras jurídicas consolidadas e claramente delineadas em nossos códigos, a "violência obstétrica" não se encontra tipificada como um crime específico no Código Penal brasileiro, tampouco como uma infração administrativa explicitamente definida em lei federal ou nas normativas primárias dos conselhos de medicina. Esta ausência de uma moldura legal estrita, contudo, não diminui sua força ou seu impacto; pelo contrário, talvez resida aí parte de sua complexa potência.


O termo é, em sua essência, uma construção social e discursiva, com raízes profundas em movimentos internacionais de direitos humanos, em diretrizes de políticas públicas voltadas à humanização do parto e, crucialmente, nos anseios e nas vozes de movimentos sociais e de mulheres que, ao longo das últimas décadas, têm reivindicado maior protagonismo, respeito e autonomia em relação aos seus corpos e às suas experiências de maternidade. Sua disseminação ganhou tração notável a partir da década de 2010, impulsionada pela crescente conscientização sobre os direitos das pacientes, pela amplificação proporcionada pela mídia e, de forma exponencial, pelas redes sociais, que se tornaram um canal poderoso para o compartilhamento de narrativas e a formação de uma consciência coletiva sobre o tema.


Atualmente, a expressão "violência obstétrica" permeia uma vasta gama de contextos, influenciando de maneira significativa a atuação de órgãos ético-profissionais e judiciais. Ela é invocada em:


• Processos ético-profissionais perante os Conselhos Regionais de Medicina (CRM): Onde condutas são analisadas à luz dos princípios fundamentais do Código de Ética Médica, mesmo na ausência de uma tipificação específica de "violência obstétrica".


• Ações cíveis por danos morais e materiais: Nas quais se busca a reparação por sofrimentos, traumas e prejuízos decorrentes de experiências de parto percebidas como desrespeitosas ou negligentes.


• Processos criminais: Embora não exista o crime de "violência obstétrica" per se, determinadas condutas podem ser enquadradas em tipos penais já existentes, como lesão corporal (Art. 129 do Código Penal), constrangimento ilegal (Art. 146 do Código Penal) ou omissão de socorro (Art. 135 do Código Penal), sendo a narrativa da violência obstétrica o pano de fundo que contextualiza e agrava a percepção da conduta.


• Mídia e redes sociais: Onde o termo ganha contornos muitas vezes sensacionalistas, moldando a opinião pública e exercendo uma pressão considerável sobre instituições e profissionais.


A força dessa categoria narrativa reside precisamente em sua capacidade de evocar uma resposta emocional intensa e de encapsular uma gama variada de experiências negativas. É crucial notar que, na maioria esmagadora das vezes, as alegações não se referem exclusivamente a atos de violência física explícita. Pelo contrário, grande parte das denúncias se concentra em aspectos comunicacionais, relacionais e emocionais da interação entre a equipe de saúde e a paciente. A percepção de desrespeito, humilhação, falta de empatia ou negligência informacional frequentemente constitui o cerne da queixa.


Entre os comportamentos e situações mais frequentemente apontados como configuradores de violência obstétrica, destacam-se:


• Comunicação inadequada ou desrespeitosa: Inclui comentários considerados ofensivos, humilhantes, julgadores, ou que minimizem a dor e a experiência da mulher. A falta de clareza nas informações prestadas, o uso de linguagem técnica inacessível sem a devida explicação, ou a ausência de um diálogo que permita à paciente expressar seus medos e preferências também se enquadram aqui.


• Realização de procedimentos invasivos sem consentimento informado claro, específico e documentado: Este é um ponto nevrálgico. A autonomia da paciente pressupõe que ela seja devidamente informada sobre a natureza, os riscos, os benefícios e as alternativas de cada procedimento, e que seu consentimento seja obtido de forma livre e esclarecida, preferencialmente documentado em prontuário. A ausência desse processo é uma falha grave.


• Recusa injustificada de métodos de alívio da dor (analgesia): O acesso à analgesia de parto, quando desejado pela paciente e clinicamente apropriado, é considerado um direito. A negativa arbitrária ou a demora excessiva em sua administração podem ser interpretadas como negligência e desrespeito ao sofrimento da parturiente.


• Episiotomia realizada de forma rotineira, sem indicação clínica precisa ou sem o consentimento explícito da paciente: A episiotomia, um corte cirúrgico no períneo, já foi uma prática comum, mas hoje suas indicações são restritas e baseadas em evidências científicas. Sua realização indiscriminada ou sem a anuência da mulher é uma das queixas mais recorrentes.


• Utilização de manobras obstétricas controversas ou proscritas, como a Manobra de Kristeller (pressão sobre o fundo uterino): Esta manobra, que consiste em aplicar pressão na parte superior do útero para acelerar o período expulsivo, é amplamente desaconselhada por diversas organizações de saúde devido ao risco de complicações maternas e fetais, e sua aplicação é frequentemente citada como um exemplo de prática violenta.


• Restrição à presença de acompanhante de livre escolha da parturiente: A Lei Federal nº 11.108/2005 garante à parturiente o direito a um acompanhante durante todo o período de trabalho de parto, parto e pós-parto imediato. A negação desse direito, salvo em situações excepcionais e justificadas, é uma violação.


• Percepção de um atendimento autoritário, frio, insensível ou que infantilize a mulher: A forma como o cuidado é prestado tem um impacto profundo na experiência do parto. Um tratamento que não reconheça a dignidade, a autonomia e a capacidade de decisão da mulher pode gerar sentimentos de impotência e trauma.


A tabela a seguir sintetiza algumas dessas condutas e seu potencial de risco, ressaltando a complexidade inerente à sua avaliação:

Conduta

Potencial de Risco de Denúncia

Observação

Comentários considerados ofensivos, humilhantes ou julgadores

Alto

Altamente subjetivo; depende da percepção individual da paciente e do contexto da interação. A sensibilidade cultural também é um fator.

Procedimentos invasivos sem consentimento informado formal e documentado

Muito Alto

Ponto crítico e frequentemente indefensável. A documentação do consentimento é a pedra angular da proteção médica.

Episiotomia realizada sem justificativa clínica clara e documentada

Alto

Prática cada vez mais questionada; a ausência de registro da indicação técnica e do consentimento específico fragiliza a defesa.

Manobra de Kristeller (pressão fúndica)

Muito Alto

Prática proscrita ou fortemente desaconselhada por diretrizes nacionais e internacionais. De difícil justificação.

Omissão ou retardo injustificado de analgesia quando solicitada

Alto

Fortemente ligada à percepção de cuidado respeitoso e ao direito da paciente de ter sua dor adequadamente manejada.

Restrição à presença do acompanhante de escolha da paciente

Alto

Violação de direito legalmente estabelecido, salvo exceções muito bem fundamentadas e documentadas.

Falta de privacidade ou exposição desnecessária da paciente

Moderado a Alto

Atenta contra a dignidade e pode gerar constrangimento e trauma.

Negligência na comunicação sobre o estado de saúde da mãe ou do bebê

Alto

A falta de informação clara e contínua gera ansiedade, desconfiança e pode ser interpretada como desrespeito.

É crucial, portanto, que o profissional da obstetrícia desenvolva uma compreensão que transcenda a mera técnica médica. A prática contemporânea exige um olhar aguçado para as dimensões humanas, sociais e comunicacionais do cuidado. Requer uma sensibilidade para perceber as expectativas, os medos e as necessidades individuais de cada paciente, e um rigor absoluto na documentação de cada ato, de cada decisão e, fundamentalmente, de cada consentimento obtido. A era da medicina paternalista, onde a decisão médica era incontestável, cedeu lugar a um paradigma de autonomia do paciente e de cuidado compartilhado. Ignorar essa transformação não é apenas anacrônico; é perigoso.


A Escalada das Denúncias: Por Que o Risco de Acusações por Violência Obstétrica Cresce de Forma Exponencial?


A crescente maré de denúncias por suposta violência obstétrica não é um evento fortuito ou uma tendência passageira. Pelo contrário, representa a confluência de uma série de transformações profundas e interconectadas que vêm remodelando o panorama social, cultural, jurídico e institucional da assistência ao parto. Compreender as forças motrizes por trás desse aumento exponencial é o primeiro passo para que o médico possa desenvolver uma postura preventiva verdadeiramente inteligente e eficaz, capaz de mitigar riscos e proteger sua prática profissional.


Este não é um fenômeno isolado, restrito a um grupo específico de profissionais ou a uma região particular. Trata-se de uma mudança de paradigma que se consolidou ao longo da última década, alimentada por uma complexa teia de fatores que, juntos, criaram um ambiente de maior escrutínio, maior sensibilidade e, consequentemente, maior vulnerabilidade para os obstetras.


A Profunda Transformação das Expectativas Sociais em Relação ao Parto:


No cerne dessa escalada está uma mudança fundamental na forma como a sociedade, e em particular as mulheres, percebem e vivenciam o processo de dar à luz. Se, em gerações passadas, predominava uma visão mais passiva e médico-centrada, onde as decisões eram quase que exclusivamente delegadas ao profissional de saúde, o cenário contemporâneo é marcado por uma vigorosa e legítima reivindicação por autonomia, protagonismo e respeito. As mulheres de hoje, mais informadas e empoderadas, buscam uma experiência de parto que seja não apenas segura do ponto de vista clínico, mas também emocionalmente satisfatória, humanizada e alinhada com seus valores e desejos.


Essa transformação é, em si, um avanço inegável. Ela impulsionou a adoção de práticas mais baseadas em evidências, o questionamento de intervenções desnecessárias e a valorização do cuidado centrado na paciente. Contudo, essa elevação das expectativas, quando não acompanhada de uma comunicação clara, de um alinhamento de perspectivas e de uma compreensão mútua das limitações e incertezas inerentes ao processo obstétrico, pode gerar um terreno fértil para frustrações e, subsequentemente, para a percepção de violência. O que era considerado um procedimento padrão ou uma conduta aceitável há uma ou duas décadas, hoje pode ser rapidamente interpretado como inadequado, desrespeitoso ou até mesmo abusivo, caso não haja um diálogo transparente e uma construção conjunta do plano de cuidados.


A Construção e Amplificação da Narrativa Midiática e Digital da Violência Obstétrica:


A mídia tradicional e, de forma ainda mais impactante, as plataformas digitais e redes sociais, desempenharam um papel crucial na consolidação e disseminação do conceito de violência obstétrica. Reportagens, documentários, campanhas de conscientização e, sobretudo, o compartilhamento viral de relatos pessoais de experiências de parto traumáticas, criaram uma narrativa poderosa e de grande apelo emocional. Essa narrativa, muitas vezes, tende a generalizar e a rotular qualquer experiência negativa ou desfecho insatisfatório como "violência obstétrica", independentemente da análise técnica ou contextual dos fatos.


O resultado é uma sensibilização pública massiva para o tema, o que, por um lado, é positivo ao dar voz a questões importantes, mas, por outro, pode gerar um ambiente de pré-julgamento e de desconfiança em relação aos profissionais. O médico, nesse contexto, encontra-se sob um escrutínio constante, onde qualquer palavra mal colocada ou procedimento mal compreendido pode ser rapidamente amplificado e distorcido, alimentando um ciclo de indignação e condenação pública antes mesmo de qualquer apuração formal.


A Inegável Tendência de Judicialização da Medicina, com Ênfase na Obstetrícia:


A medicina como um todo tem enfrentado uma crescente judicialização, mas a obstetrícia se destaca como uma das especialidades mais suscetíveis a litígios. Diversos fatores contribuem para isso: a alta carga emocional envolvida no nascimento, as expectativas frequentemente idealizadas em torno do parto "perfeito", a imprevisibilidade de certos desfechos mesmo com a melhor assistência, e a percepção de que qualquer resultado adverso poderia ter sido evitado. O Judiciário, por sua vez, tem se mostrado cada vez mais receptivo a teses que invocam a violência obstétrica, refletindo uma maior sensibilidade às questões de direitos humanos e à proteção da autonomia da mulher. Essa postura, embora bem-intencionada, pode, em alguns casos, levar a decisões mais pautadas por percepções emocionais e narrativas de vulnerabilidade do que por uma análise estritamente técnica das evidências e da conduta médica.


A Facilidade de Acesso a Canais de Denúncia e Redes de Apoio:


No passado, formalizar uma denúncia contra um profissional de saúde poderia ser um processo complexo e intimidador. Hoje, a era digital democratizou o acesso à informação e aos canais de denúncia. Pacientes que se sentem lesadas ou desrespeitadas encontram facilmente plataformas online, ouvidorias, conselhos de classe e redes de apoio (muitas vezes formadas por grupos de ativistas ou outras mulheres que passaram por experiências semelhantes) que as orientam e as encorajam a buscar reparação. Muitos desses movimentos organizados oferecem suporte jurídico e emocional, estimulando ativamente a formalização de queixas e a busca por responsabilização.


A Crescente Sensibilização e Atuação dos Órgãos de Controle e do Sistema de Justiça:


Em sintonia com as transformações sociais e com a maior visibilidade do tema, órgãos como o Ministério Público, os Conselhos de Medicina e o próprio Poder Judiciário têm demonstrado uma maior atenção e rigor na apuração de denúncias relacionadas à assistência ao parto. Há uma tendência crescente de se adotar uma postura de proteção ampliada aos direitos das mulheres, o que, embora fundamental, exige dos profissionais um padrão de conduta e de documentação ainda mais elevado para evitar interpretações equivocadas de seus atos.


A tabela abaixo resume o impacto desses fatores no aumento do risco de denúncias:

Fator

Impacto no Risco de Denúncia

Implicações para a Prática Médica

Transformação das expectativas sociais em relação ao parto

Muito Alto

Exige comunicação excepcional, alinhamento de expectativas, consentimento informado detalhado e uma abordagem de cuidado verdadeiramente centrada na paciente e em sua autonomia.

Narrativa midiática e digital da violência obstétrica

Muito Alto

Aumenta o escrutínio público e a sensibilidade a qualquer percepção de falha. Requer proatividade na gestão da reputação e extrema cautela na comunicação, mesmo em ambientes informais.

Judicialização crescente da obstetrícia

Muito Alto

Demanda rigor absoluto na documentação clínica (prontuários impecáveis), adesão estrita a protocolos baseados em evidências e uma compreensão clara dos aspectos médico-legais da prática.

Facilidade de acesso a canais de denúncia e redes de apoio

Alto

Torna a formalização de queixas mais provável. Enfatiza a necessidade de resolver conflitos e insatisfações de forma rápida e eficaz, sempre que possível, através do diálogo e da transparência.

Sensibilização crescente dos órgãos de controle e do Sistema de Justiça

Muito Alto

Implica em investigações mais frequentes e, potencialmente, mais rigorosas. Reforça a importância de uma defesa técnica especializada desde o primeiro momento em que uma denúncia surge, mesmo que informalmente.

Em suma, o médico obstetra navega hoje em um oceano de complexidades que vai muito além da ciência médica. É um ambiente onde a percepção, a comunicação e a documentação assumem um papel tão crítico quanto a habilidade técnica. Ignorar essas dinâmicas não é uma opção para o profissional que deseja preservar sua carreira e sua paz de espírito. É preciso, mais do que nunca, uma prática médica que seja não apenas competente, mas também consciente, empática, transparente e estrategicamente protegida.


As Múltiplas Esferas de Risco: As Consequências Devastadoras de uma Denúncia por Violência Obstétrica


Uma das verdades mais cruéis e, por vezes, subestimadas no cenário das denúncias por suposta violência obstétrica é a multiplicidade e a interconexão das esferas de risco que o médico pode enfrentar. Longe de se restringir a um único processo ou a uma única instância de julgamento, uma denúncia dessa natureza tem o potencial de desencadear uma cascata de repercussões que se manifestam simultaneamente em diversos âmbitos – ético, administrativo, cível, criminal, institucional e, de forma avassaladora, reputacional. Compreender a profundidade e a gravidade de cada uma dessas esferas é fundamental para que o profissional possa dimensionar o risco e, consequentemente, adotar uma postura verdadeiramente estratégica em sua defesa.


O Processo Ético no Conselho Regional de Medicina (CRM): A Primeira Linha de Batalha

A denúncia de suposta violência obstétrica, em sua maioria, encontra sua primeira formalização no Conselho Regional de Medicina (CRM) da jurisdição do profissional. Os CRMs, em sintonia com a crescente sensibilização social e a pressão dos movimentos por humanização do parto, têm demonstrado uma celeridade e um rigor cada vez maiores na instauração e condução desses processos ético-profissionais. O que se inicia como uma queixa, pode rapidamente evoluir para uma sindicância e, posteriormente, para um Processo Ético-Profissional (PEP), no qual a conduta do médico será minuciosamente investigada à luz do Código de Ética Médica e das resoluções do Conselho Federal de Medicina (CFM).


As sanções aplicáveis, em caso de condenação, variam em gravidade, mas todas carregam um peso significativo para a carreira e a imagem do médico:


• Advertência Confidencial: A mais branda das penalidades, registrada no prontuário do médico, mas sem publicidade.


• Censura Confidencial: Uma repreensão formal, também sem publicidade, mas com maior peso disciplinar.


• Censura Pública: Uma penalidade de grande impacto, pois a decisão é publicada em diário oficial e nos veículos de comunicação do CRM, expondo o médico ao escrutínio público e a um dano reputacional imediato.


• Suspensão do Exercício Profissional: Uma medida drástica que impede o médico de exercer a medicina por um período determinado (geralmente até 30 dias). Além do prejuízo financeiro, a suspensão acarreta um estigma profissional considerável.


• Cassação do Registro Profissional: A sanção máxima, que implica na perda definitiva do direito de exercer a medicina em todo o território nacional. É a morte civil do profissional. É crucial ressaltar que, embora rara, já existem casos concretos de cassação de registro profissional baseados exclusivamente em denúncias de violência obstétrica, o que demonstra a seriedade com que o tema é tratado pelos Conselhos.


Nesse cenário, a defesa no âmbito do CRM exige uma abordagem técnica e estratégica impecável. Erros comuns, como minimizar a gravidade da denúncia, apresentar uma defesa excessivamente emocional em vez de pautada em fatos e evidências, ou responder de forma impulsiva e sem o devido aconselhamento jurídico, podem ser determinantes para um desfecho desfavorável. A documentação clínica, a coerência da narrativa e a capacidade de demonstrar a conformidade da conduta com as melhores práticas e a legislação vigente são pilares inegociáveis para uma defesa robusta.


O Processo Administrativo Disciplinar (PAD) na Administração Pública: Riscos para o Servidor

Médicos que atuam em hospitais públicos, universidades federais, ou qualquer outra instituição vinculada à Administração Pública (sejam eles servidores efetivos, contratados ou cooperados), enfrentam uma camada adicional de risco: o Processo Administrativo Disciplinar (PAD). Uma denúncia de violência obstétrica, especialmente se envolver a conduta de um servidor público, pode e frequentemente desencadeia a instauração de um PAD, que tramita paralelamente ao processo ético no CRM e a quaisquer outras ações judiciais.


O PAD possui ritos e sanções próprias, que podem ter um impacto direto e devastador na vida funcional do médico. As penalidades possíveis incluem:


• Advertência ou Repreensão: Registros formais na ficha funcional do servidor.


• Suspensão de Funções: Afastamento temporário do cargo, com prejuízo de remuneração, o que acarreta não apenas um impacto financeiro, mas também um dano à imagem profissional dentro da instituição.


• Demissão do Cargo Público: A sanção mais grave, que implica na perda definitiva do vínculo com a Administração Pública. Para um médico que dedicou anos à sua carreira no serviço público, essa é uma consequência de proporções catastróficas.


• Declaração de Inidoneidade: Em casos extremos, o médico pode ser declarado inidôneo para nova contratação ou para participar de licitações com o poder público, fechando portas futuras no setor.


O PAD, muitas vezes, tramita com grande celeridade e sob forte pressão institucional, especialmente se o caso ganhar repercussão midiática. A defesa nesse âmbito exige conhecimento das especificidades do direito administrativo e da legislação que rege o serviço público, sendo crucial a apresentação de provas e argumentos que demonstrem a legalidade e a adequação da conduta médica, bem como a observância dos princípios da administração pública.


A Ação Cível por Danos Morais e Materiais:


O Peso da Reparação. Quase a totalidade das denúncias de violência obstétrica, formalizadas ou não, é acompanhada ou culmina na propositura de uma Ação Cível por Danos Morais e Materiais. Esta é, sem dúvida, uma das esferas de risco mais palpáveis e financeiramente impactantes para o médico. O objetivo da ação cível é buscar a reparação pelos alegados danos sofridos pela paciente (e, por vezes, por seus familiares) em decorrência da conduta. Os valores pleiteados nessas ações frequentemente atingem cifras elevadas, superando facilmente os R$ 200 mil apenas para danos morais da paciente. Além disso, podem ser pleiteados danos morais para familiares (cônjuge, pais, outros filhos), que variam de R$ 50 mil a R$ 100 mil.


Os danos materiais, por sua vez, podem incluir custos de terapias, tratamentos complementares, despesas com medicamentos, sessões de psicoterapia para lidar com o trauma, entre outros, que podem se estender por anos. Decisões recentes em tribunais brasileiros vêm fixando indenizações significativas, com valores que oscilam entre R$ 50 mil e R$ 150 mil para danos morais, dependendo da gravidade da conduta alegada e do impacto na vida da paciente.


A jurisprudência tem demonstrado uma tendência crescente de proteção à parturiente, o que eleva o risco de condenação para o profissional. É um cenário de maior impacto financeiro e de mais longa duração para o profissional e sua família. de oxigenação no cérebro do bebê durante o parto, que pode levar a danos neurológicos permanentes.


• Encefalopatia Hipóxico-Isquêmica (EHI): Uma forma mais grave de lesão cerebral causada pela privação de oxigênio e fluxo sanguíneo.


• Paralisia Cerebral: Um grupo de distúrbios que afetam a capacidade de uma pessoa de se mover e manter o equilíbrio e a postura, frequentemente atribuídos a lesões cerebrais ocorridas antes, durante ou logo após o nascimento.


• Deficiências Cognitivas e Motoras: Outras sequelas que demandam cuidados contínuos e especializados.


A finalidade da pensão vitalícia é custear todas as despesas necessárias para a manutenção da vida e a qualidade de vida do indivíduo lesado ao longo de toda a sua existência. Isso inclui, mas não se limita a:


• Terapias Multidisciplinares: Fisioterapia, fonoaudiologia, terapia ocupacional, psicomotricidade, equoterapia, entre outras, que podem ser necessárias por toda a vida.


• Medicamentos e Suplementos: Custos contínuos com medicações específicas e suplementos nutricionais.


• Equipamentos Médicos e Adaptações: Cadeiras de rodas, órteses, próteses, equipamentos de auxílio respiratório, adaptações residenciais e veiculares.


• Cuidadores 24h: Em muitos casos, a criança/indivíduo necessitará de assistência contínua, o que implica em custos com cuidadores ou enfermeiros.


• Educação Especializada: Despesas com escolas ou instituições de ensino adaptadas às necessidades especiais.


• Despesas com Transporte e Lazer Adaptado: Custos para garantir a inclusão social e o bem-estar.


O impacto financeiro de uma pensão vitalícia é colossal. Há casos em que o valor mensal da pensão supera os R$ 10 mil, com atualização permanente (geralmente pelo salário mínimo ou por índices de inflação), o que pode representar um custo total de R$ 2 a R$ 4 milhões ao longo da vida da criança, dependendo da expectativa de vida.


Esse montante, muitas vezes, é imposto solidariamente ao médico e à instituição de saúde, mas a responsabilidade do profissional é direta e duradoura. A ameaça de uma pensão vitalícia é um dos maiores pesadelos financeiros para qualquer médico, capaz de comprometer não apenas seu patrimônio, mas o futuro de sua família por gerações.


O Processo Criminal: O Estigma da Investigação

Embora a taxa de condenações criminais em casos de violência obstétrica seja comparativamente menor do que em outras esferas, a possibilidade de um processo criminal é uma realidade que não pode ser ignorada. O Ministério Público, ao tomar conhecimento de denúncias que indicam a prática de condutas com potencial de configurar crime, pode promover a instauração de inquérito policial ou, diretamente, de uma ação penal.

Os crimes mais frequentemente investigados nesse contexto incluem:


• Lesão Corporal (Art. 129 do Código Penal): Quando a conduta médica resulta em dano físico à paciente ou ao recém-nascido, seja por ação ou omissão. A gravidade da lesão (leve, grave, gravíssima) influencia diretamente a pena.


• Constrangimento Ilegal (Art. 146 do Código Penal): Quando o médico, mediante violência ou grave ameaça, constrange a paciente a fazer o que a lei não manda, ou a não fazer o que a lei permite. Isso pode ocorrer, por exemplo, na imposição de procedimentos sem consentimento.


• Omissão de Socorro (Art. 135 do Código Penal): Embora menos comum em casos de violência obstétrica, pode ser invocada se houver uma falha em prestar assistência em situação de perigo iminente, quando possível fazê-lo sem risco pessoal.


Mesmo que o processo criminal não resulte em condenação, o simples fato de ser investigado ou de responder a uma ação penal já gera um impacto emocional e reputacional imenso. A exposição pública, a necessidade de contratar advogados criminalistas, a participação em audiências e a incerteza sobre o futuro são fatores que causam um desgaste psicológico profundo. Além disso, a existência de um processo criminal pode ter reflexos negativos em outras esferas, como a ética e a administrativa, influenciando a percepção dos julgadores.


A Sindicância Hospitalar e o Impacto nas Relações Institucionais

Além das esferas externas, o médico pode enfrentar processos internos na instituição onde atua. Hospitais, clínicas e maternidades, ao receberem denúncias de violência obstétrica, frequentemente instauram sindicâncias internas para apurar os fatos. Essas sindicâncias, embora não tenham o mesmo poder de sanção legal que um CRM ou um tribunal, podem ter consequências diretas e imediatas na prática profissional do médico:


• Afastamento Cautelar: O médico pode ser temporariamente afastado de suas funções enquanto a sindicância tramita, o que gera prejuízo financeiro e um forte abalo na imagem perante colegas e pacientes.


• Suspensão de Plantões ou Atividades Específicas: Restrição de atuação em determinadas áreas ou horários.


• Rescisão Contratual: Em casos mais graves, a instituição pode optar por rescindir o contrato de trabalho ou de prestação de serviços com o médico, resultando na perda de emprego e de fonte de renda.


• Comunicação aos Órgãos Competentes: A instituição pode, e muitas vezes o faz, comunicar a denúncia e os resultados da sindicância ao CRM, ao Ministério Público ou a outros órgãos, retroalimentando as demais esferas de risco.


Essas sindicâncias internas, muitas vezes conduzidas de forma rápida e sob pressão para dar uma resposta à paciente e à opinião pública, exigem do médico uma postura colaborativa, mas também estratégica, para apresentar sua versão dos fatos e evitar que a narrativa da acusação se consolide sem o devido contraditório.


O Impacto nos Planos de Saúde e Operadoras: A Restrição do Acesso ao Mercado

Uma denúncia de violência obstétrica, especialmente se resultar em sanção ética ou condenação judicial, pode ter um impacto direto e significativo nas relações do médico com os planos de saúde e operadoras. Essas empresas, visando proteger sua imagem e evitar riscos financeiros e legais, podem adotar medidas restritivas em relação ao profissional:


• Suspensão ou Descredenciamento: O médico pode ter seu credenciamento suspenso ou cancelado junto a um ou mais planos de saúde, o que limita drasticamente sua capacidade de atender pacientes conveniados, impactando diretamente sua fonte de renda.


• Restrição de Encaminhamentos: As operadoras podem deixar de encaminhar pacientes para o médico, direcionando-as para outros profissionais de sua rede.


• Inclusão em Listas de Risco: O nome do médico pode ser incluído em listas internas de risco ou de monitoramento, o que dificulta a obtenção de novos credenciamentos ou a participação em programas de saúde.


Essas medidas, muitas vezes tomadas de forma unilateral pelas operadoras, podem ter um efeito cascata, prejudicando a reputação do médico no mercado e dificultando sua recolocação ou a expansão de sua clientela. A defesa nesse âmbito exige não apenas a resolução das denúncias primárias, mas também uma gestão ativa da imagem e das relações com as fontes pagadoras.


A Exposição Midiática e o Linchamento Público: O Dano Irreparável à Imagem

Talvez a consequência mais imediata, avassaladora e, por vezes, irreversível de uma denúncia de violência obstétrica seja a exposição midiática e o consequente linchamento público. Em uma era dominada pelas redes sociais e pela velocidade da informação, uma única postagem, um relato viral ou uma reportagem sensacionalista podem destruir uma reputação construída ao longo de décadas em questão de horas.


O ciclo típico desse linchamento moral segue um padrão preocupante:


• Viralização da Narrativa: Relatos emocionais de pacientes ou familiares são publicados em redes sociais, muitas vezes com fotos, nomes e detalhes que identificam o médico e a instituição. Essas publicações, impulsionadas por algoritmos e pela indignação coletiva, viralizam rapidamente, sendo compartilhadas por centenas ou milhares de pessoas de forma acrítica.


• Ataques Pessoais e Ameaças: O médico passa a ser alvo de uma enxurrada de comentários ofensivos, xingamentos, ameaças e constrangimento público, não apenas nas redes sociais, mas também em canais de comunicação diretos, como e-mail e telefone.


• Reportagens Sensacionalistas: A mídia tradicional, em busca de audiência, frequentemente repercute esses casos, muitas vezes sem a devida apuração ou sem dar voz adequada à defesa do profissional, contribuindo para a construção de uma imagem negativa.


• Cancelamento e Isolamento: A pressão pública pode levar ao cancelamento de contratos privados, ao afastamento de atividades hospitalares e acadêmicas, à perda de pacientes e ao isolamento social e profissional do médico.


O problema dessa dinâmica é que ela inverte o devido processo legal. A presunção de inocência desaparece. A versão da acusação passa a prevalecer na opinião pública, colocando o médico em uma posição de extrema vulnerabilidade. Mesmo que, ao final de todos os processos, o médico seja absolvido em todas as instâncias, o dano reputacional já pode ser irreversível. A mancha na imagem, a desconfiança do público e a dificuldade de reconstruir a carreira podem persistir por anos, ou até mesmo por toda a vida. A gestão de crise de imagem e a comunicação estratégica tornam-se, nesse contexto, tão importantes quanto a própria defesa jurídica.


Em síntese, as consequências de uma denúncia de violência obstétrica são um emaranhado complexo de riscos que exigem do médico uma compreensão multifacetada e uma preparação que vai muito além da excelência técnica. É um cenário que demanda não apenas uma defesa jurídica robusta, mas uma estratégia abrangente que contemple todas as esferas de sua vida profissional e pessoal. Ignorar qualquer uma dessas dimensões é expor-se a um risco inaceitável.


A Importância de uma Postura Estratégica e de uma Condução Especializada


Diante do cenário multifacetado e de altíssimo risco delineado nas seções anteriores, torna-se não apenas recomendável, mas absolutamente imperativo que o médico adote uma postura estratégica, ética e meticulosamente cautelosa em todas as fases de sua atuação profissional, e, de forma ainda mais crítica, ao se deparar com qualquer tipo de denúncia relacionada à suposta violência obstétrica. A complexidade do tema, a subjetividade inerente às acusações e as múltiplas esferas de responsabilização exigem uma abordagem que transcenda a mera reação pontual e se configure como uma verdadeira estratégia de proteção da carreira e da reputação.


Não se trata, em hipótese alguma, de um manual para "montar uma defesa" ou de um guia de "como se livrar" de uma acusação. Pelo contrário, o que se busca é reforçar a ideia de que a condução de casos envolvendo violência obstétrica é um terreno movediço, que exige um conhecimento profundo da prática forense e médica, uma visão crítica e uma capacidade de antecipação que apenas uma condução especializada pode oferecer. A serenidade, aliada à técnica jurídica e ética, é a melhor aliada do médico em momentos assim.


Manter Absoluta Prudência na Comunicação Pública e Institucional

O primeiro e talvez mais crucial pilar de uma postura estratégica é a gestão da comunicação. Em um ambiente onde a narrativa midiática e as redes sociais podem pré-julgar e condenar um profissional em questão de horas, a impulsividade na comunicação é um erro fatal. O médico, ao ser confrontado com uma denúncia, seja ela formal ou informal (como uma postagem em rede social), deve resistir à tentação de:


• Responder publicamente nas redes sociais: O impulso de "dar sua versão" ou "defender sua honra" é compreensível, mas ao fazê-lo, o médico corre o risco de violar o sigilo profissional (ao comentar sobre fatos relacionados ao atendimento de um paciente, mesmo que para se defender) e de alimentar a polêmica, dando mais visibilidade e legitimidade à acusação. O ambiente digital não é um tribunal; é um palco para linchamentos.


• Fazer declarações precipitadas à imprensa ou a colegas: Qualquer palavra mal colocada pode ser distorcida, amplificada e usada contra o profissional em outras esferas. A comunicação deve ser centralizada, estratégica e, idealmente, mediada por um profissional especializado em gestão de crise e comunicação jurídica.


• Discutir o caso com terceiros não envolvidos: A discrição é fundamental. Conversas informais, mesmo com amigos ou familiares, podem gerar vazamentos ou interpretações equivocadas que, posteriormente, podem prejudicar a defesa.


A comunicação deve ser restrita aos canais formais e orientada por uma estratégia jurídica. Isso não significa silêncio absoluto, mas sim um silêncio estratégico, que preserve a imagem do profissional e evite a criação de provas contra si mesmo.


Evitar Reações Emocionais e Precipitadas

Ser alvo de uma denúncia, especialmente uma acusação tão grave como a de violência obstétrica, é uma experiência profundamente desestabilizadora. A ansiedade, o medo, a raiva e a sensação de injustiça são reações humanas e compreensíveis. No entanto, permitir que essas emoções guiem as primeiras ações do médico é um caminho perigoso. Erros comuns decorrentes da emoção incluem:


• Ignorar o problema: A esperança de que a situação "se resolva sozinha" ou o medo de enfrentá-la podem levar à inércia, o que é um erro grave. O tempo é inimigo da defesa; cada dia que passa sem documentação adequada e sem a adoção de medidas protetivas é uma oportunidade perdida de consolidar uma versão robusta e defensável dos fatos.


• Destruir provas ou alterar registros: Em um momento de pânico, o médico pode ser tentado a alterar prontuários ou apagar registros. Essa é uma conduta criminosa e eticamente condenável que, além de agravar exponencialmente a situação jurídica, destrói qualquer possibilidade de defesa legítima.


• Confrontar diretamente o denunciante: Buscar o paciente ou seus familiares para "resolver" a situação sem o devido aconselhamento jurídico pode agravar o conflito, gerar novas acusações (como assédio ou ameaça) e criar provas adicionais contra o médico.


A primeira reação deve ser a busca por aconselhamento especializado. Um profissional com experiência em direito médico e em gestão de crises pode oferecer a serenidade e a clareza necessárias para traçar um plano de ação racional e eficaz, protegendo o médico de si mesmo em um momento de vulnerabilidade.


Adotar Rigor Absoluto na Documentação Clínica e na Obtenção de Consentimento Informado

A documentação clínica é a espinha dorsal de qualquer defesa médica. Em casos de violência obstétrica, sua importância é ainda mais amplificada. Um prontuário médico impecável, completo, legível e cronologicamente organizado é a prova mais robusta da conduta do profissional. Isso inclui:


• Registros Detalhados: Anotações precisas sobre a evolução do trabalho de parto, os procedimentos realizados, as intercorrências, as condutas adotadas e as justificativas clínicas para cada decisão. A ausência de registro é, para o direito, a ausência do fato.


• Consentimento Informado: A obtenção do consentimento informado não é uma mera formalidade burocrática; é um processo contínuo de diálogo e esclarecimento. O registro detalhado desse processo – as informações prestadas à paciente, as alternativas discutidas, os riscos e benefícios apresentados, as dúvidas esclarecidas e a manifestação de vontade da paciente – é crucial. Em casos de violência obstétrica, a alegação de ausência de consentimento é uma das mais frequentes e difíceis de refutar sem a devida documentação.


• Preservação de Provas: Além do prontuário, é fundamental preservar outras provas que possam corroborar a versão do médico. Isso inclui prints de postagens em redes sociais (com data e hora), mensagens, e-mails, e a identificação de testemunhas (equipe de enfermagem, outros médicos, acompanhantes que possam atestar a conduta do profissional).


Uma documentação falha ou incompleta pode fragilizar até mesmo a conduta mais correta, pois, na ausência de provas, a narrativa da acusação tende a prevalecer. O rigor na documentação é um investimento na segurança jurídica do profissional.


Buscar, Desde o Início, uma Condução Jurídica Especializada e Estratégica

Este é o ponto central e inegociável. Casos de violência obstétrica não são processos comuns. São procedimentos que envolvem questões técnicas, jurídicas, éticas e reputacionais de enorme complexidade, exigindo uma abordagem multidisciplinar e um conhecimento aprofundado das nuances que permeiam a prática médica e o sistema de justiça.


Uma condução jurídica especializada e estratégica significa:


• Análise Multidisciplinar: A avaliação do caso deve envolver não apenas a perspectiva jurídica, mas também a médica. A busca por pareceres técnicos de especialistas na área (obstetras, peritos médicos) é fundamental para embasar a defesa com argumentos científicos e técnicos irrefutáveis.


• Construção de Narrativa Defensiva Coesa: A defesa não é apenas a refutação da acusação; é a construção de uma narrativa própria, coerente e baseada em fatos e evidências. Essa narrativa deve ser consistente em todas as esferas (CRM, judicial, administrativa), evitando contradições que possam ser usadas contra o médico.


• Antecipação de Movimentos: Um advogado especializado é capaz de antecipar os possíveis movimentos da acusação, as teses que serão levantadas e as provas que serão buscadas, permitindo que a defesa se prepare proativamente.


• Gestão de Crise de Imagem: A estratégia jurídica deve estar alinhada com uma estratégia de gestão de crise de imagem, visando minimizar os danos reputacionais e, quando possível, reverter a narrativa pública.


• Acompanhamento em Todas as Esferas: A complexidade do tema exige que o médico seja acompanhado por um profissional que tenha expertise para atuar em todas as esferas de risco (CRM, cível, criminal, administrativa, hospitalar), garantindo uma defesa integrada e coesa.


Não se trata de "contratar um advogado", mas de escolher um parceiro estratégico que compreenda a fundo as particularidades da medicina e do direito médico, e que seja capaz de oferecer uma blindagem jurídica e reputacional eficaz. A condução especializada é um investimento na preservação da carreira, do patrimônio e da paz de espírito do médico.


Em suma, a postura estratégica diante de uma denúncia de violência obstétrica é um complexo quebra-cabeça que exige prudência na comunicação, controle emocional, rigor documental e, acima de tudo, uma condução jurídica especializada. É a combinação desses elementos que permitirá ao médico navegar por esse cenário desafiador com a segurança e a confiança necessárias para proteger sua nobre missão.


A Resiliência da Prática Médica na Era da Complexidade

A obstetrícia contemporânea, como pudemos observar ao longo deste artigo, é uma especialidade que se encontra em um ponto de inflexão. Desafiada por novos paradigmas sociais, por uma crescente conscientização sobre os direitos das pacientes e por um ambiente jurídico cada vez mais complexo, a prática médica no campo do parto exige do profissional uma capacidade de adaptação e uma resiliência que vão muito além do domínio técnico-científico. A legítima demanda por partos respeitosos e humanizados é, sem dúvida, um avanço civilizatório, mas ela também gerou um ambiente onde o médico pode se ver, de forma inesperada e avassaladora, exposto a riscos éticos, financeiros, administrativos e reputacionais de proporções gigantescas.


O que está em jogo em uma denúncia de violência obstétrica, como exaustivamente detalhado, transcende em muito a mera análise da técnica médica empregada. Trata-se de um terreno complexo, profundamente emocional, simbólico e jurídico, onde percepções subjetivas, narrativas sociais e a velocidade da informação podem, em questão de horas, desconstruir uma reputação construída ao longo de décadas de dedicação e estudo. A ausência de uma tipificação legal clara para o termo, paradoxalmente, não diminui seu poder; ao contrário, confere-lhe uma maleabilidade interpretativa que pode ser perigosa para o profissional.


Nesse contexto, a proteção da carreira e da reputação do médico não é mais uma questão de sorte ou de mera correção técnica. É um imperativo que exige uma compreensão profunda dessa nova realidade e, acima de tudo, uma ação proativa e inteligente. Não se trata de blindar o profissional contra a justiça, mas de municiá-lo com as ferramentas e o conhecimento necessários para que a justiça seja feita, e para que sua conduta seja avaliada de forma justa e contextualizada, e não por meio de pré-julgamentos ou narrativas distorcidas.


A serenidade, a prudência na comunicação, o rigor inegociável na documentação clínica e, de forma premente, a busca por uma condução jurídica especializada e estratégica são os pilares sobre os quais o médico pode construir sua defesa e preservar sua integridade. A complexidade do tema exige que cada passo seja dado com método, com base em conhecimento aprofundado e com a visão de quem compreende as múltiplas facetas do problema. É a combinação desses elementos que permitirá ao médico continuar exercendo sua nobre missão de trazer vidas ao mundo com a dignidade, a segurança e a paz de espírito que merece.


Este artigo, portanto, não se encerra com respostas simplistas, mas com um convite à reflexão e ao preparo contínuo. A prática médica, especialmente na obstetrícia, exige hoje uma vigilância constante e uma capacidade de adaptação que vão além do que se ensina nas faculdades. É um chamado para que o médico se torne um estrategista de sua própria carreira, um guardião de sua reputação e um defensor incansável da verdade e da justiça, sempre pautado pela ética e pela excelência. A resiliência da prática médica na era da complexidade dependerá, em grande medida, da capacidade do profissional de abraçar esses novos desafios com inteligência e responsabilidade.


É fundamental que cada passo seja dado com método, com base em um profundo conhecimento técnico e jurídico, e com o suporte de profissionais que compreendam as múltiplas facetas do tema.

Ricardo Stival é Advogado, Professor de Pós-Graduação de Direito Médico,  Especialista em Ações Judiciais de Erro Médico, Sindicâncias e Processos Éticos no CRM e CRO, com atuação em todo o Brasil
Ricardo Stival - Advogado de Direito Médico

Ricardo Stival - Advogado e Professor de Direito Médico

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